A Bastilha Nunca Desmoronará
Não me esqueço, nem perco a
consciência, de que o apoio directo do Estado à criação literária é um assunto
polémico, ambíguo e… perigoso.
Aliás, note-se, que a defesa da
dimensão transgressora do acto literário e a afirmação da necessidade da sua
absoluta liberdade têm sido os argumentos mais consistentes dos que defendem
que o Estado não deve ter nenhuma intervenção no acto de criação literária,
preconizando que o seu papel se deve limitar à divulgação e ao conhecimento
alargado em termos sociais do património literário já constituído, através da
escola e da instalação de meios que facilitem a alfabetização, a promoção da
literacia e o acesso ao livro e a outros meios de criação e de informação.
No entanto, já se torna menos
compreensível que esta preocupação se agudize apenas com a literatura e seja
menos reconhecida para com outras actividades artísticas e culturais. De facto,
nesta perspectiva da liberdade de expressão e de criação artística, torna-se
difícil de entender porque é que a sociedade encara como mais consensual o
apoio do Estado à produção teatral, por exemplo, do que à actividade literária…
Há também quem defenda que, no
respeitante aos apoios à actividade literária, o Estado deveria limitar-se à
dinamização do mercado livreiro, porque, afirmam, numa perspectiva bem
característica de certo neoliberalismo, o seu crescimento bastaria para
resolver o problema do financiamento de toda a cadeia do Livro, incluindo,
obviamente, dos autores.
Com este objectivo, preconizam, em
concreto, o reforço do papel do Estado como cliente, de forma a adquirir mais
títulos e exemplares que actualizem permanentemente os fundos bibliográficos
das suas redes de bibliotecas e outras instituições (escolas, universidades,
etc.). Ou então que apoie a própria produção editorial de forma a esbater os
seus custos e a diminuir, por consequência, o preço de venda ao público dos
livros, alargando assim as suas possibilidades de aquisição a segmentos sociais
com menor poder de compra. Ou ainda que reduza ou apoie os custos de estrutura
de editoras e livrarias de forma a dar-lhe maior solidez e resistência às
flutuações do mercado. Etc., etc.
Saliento, relativamente à “dinamização
do mercado livreiro”, que o Estado já há muito procura satisfazer este
objectivo com os seus programas de promoção das literacias e que, como já aqui
se referiu, por erros estratégicos ou não, os resultados são pouco mais do que
sofríveis. A título de exemplo, recordo, que o Plano Nacional de Leitura criou
um programa de selecção de obras (o chamado “Ler+”) que os editores e os
livreiros bem aproveitam para promover títulos e reforçar as suas vendas. Pela
minha parte, como já salientei, considero que a prioridade dos investimentos
públicos deve estar na promoção das literacias; mas isso não deve escamotear a
necessidade de integrar programas com outras formas de apoio ao livro e à
literatura, como as relacionadas com o apoio directo à criação.
É evidente que o Estado pode e deve
“reforçar o seu papel como cliente” com o fito de adquirir fundos
bibliográficos para as suas bibliotecas. Simplesmente, como se sabe, a rede de
bibliotecas públicas foi concebida e estabelecida para ficar sob a dependência
do poder local, e por consequência, não existe, no nosso país, nenhuma “central
de compras” (nem creio que fosse uma boa solução). Só que, em parte por este
facto, também não existe nenhuma informação fidedigna sobre o volume das
chamadas “aquisições Institucionais” (ou públicas), não se sabendo ao certo, no
conjunto da administração central e local, qual a sua dimensão financeira nem
quantos títulos ou exemplares são adquiridos, tornando-se assim, por
conseguinte, difícil calcular até que ponto estas aquisições têm relevância na
economia do sector. De qualquer modo, se o reforço destas aquisições pode
contribuir para uma melhoria da situação editorial, não pode ser entendida,
como é evidente, num papel substitutivo do próprio mercado.
É indiscutível, muito que se
questione a sua actuação, que as editoras e as livrarias são agentes culturais
muito relevantes e que, por isso mesmo, têm um papel social que as demarca das
restantes empresas, e, por conseguinte, devem ser apoiadas. Mas, dada a impossibilidade
financeira da universalidade desses apoios (nem financeiramente comportável nem
benéfica), é necessário uma complexa definição de critérios que, desde que não
sejam correctamente aplicados, podem dar origem a situações discriminatórias e
arbitrárias que lesam a concorrência e o funcionamento do mercado. Além disso,
só contribuem a médio e a longo prazo, de forma muito indirecta, para uma
eventual sustentabilidade da actividade literária, o que não é uma boa
perspectiva nem desejável.
Relativamente ao apoio directo do
Estado à criação literária, quero deixar bem claro que não sou ingénuo ao ponto
de considerar que o Estado não tentará condicionar o acto literário, de forma a
domesticá-lo em termos morais e padronizá-lo em termos estéticos.
Convém, no entanto, ter em
consideração que, pelo menos nas sociedades democráticas, os Estados nesta
matéria são simples executantes da vontade social dominante: é da sociedade, na
maior parte das vezes, que “nasce” a vontade de censurar ou de condicionar
certas manifestações literárias e que o Estado apenas é, com os meios que tem
ao seu dispor, o executante dessa vontade. Neste aspecto, não tenho nenhumas
dúvidas sobre este facto.
Por isso mesmo, exige-se que o
sistema literário se prepare e organize para esta possibilidade, que, aliás,
sempre existiu. É fundamental que o Estado não tenha, nem possa ter, como acima
já se percebeu, condições para o fazer. Os criadores literários devem ter,
sobre os abusos e prepotências do Estado, uma inquebrável vigilância,
individual e colectiva, procurando condicionar os seus julgamentos morais e
estéticos. Daí a importância crucial que devem ter as organizações cívicas que
congregam os criadores literários em defesa da sua autonomia e na denúncia
desses abusos que o Estado perpetre ou pretenda perpetrar, necessitando, para
isso, de ter alguma força e relevância social. E a defesa desta autonomia deve
ser um bastião que congregue todos os criadores literários, sem falhas nem
discussões. Mesmo que algumas das posições dos seus congéneres, expressas nas
suas obras, se tornem incómodas, por excesso de independência em relação aos
padrões morais e estéticos reconhecidos num determinado momento pela sociedade.
Repare-se que os vários apoios
indirectos à criação literária, que o Estado já hoje concede, nunca geraram, que
se tenha conhecimento, particulares constrangimentos em relação à autonomia da
criação literária, com excepção dos resultantes do facto de os autores e das
suas obras já integrarem o sistema literário e, por isso mesmo, já estarem
sujeitos a uma consequente avaliação cultural e literária. Mas é indiscutível
que a natureza destes apoios é limitada, pois que assentam na fase posterior à
criação da obra e visam apenas a sua maior e mais ampla divulgação.
Além disso, também tenho consciência
que as entidades da sociedade civil que congregam os escritores serão sempre
relativamente frágeis. Essa fragilidade, em grande parte, deriva do simples
facto de os escritores não possuírem nenhum estatuto de grupo (ou classe)
profissional (não é por acaso que, no nosso país, a entidade com maior
relevância e peso social seja a Sociedade Portuguesa dos Autores); mas os
escritores, aproveitando a circunstância de a sociedade ainda lhes conceder o
estatuto de serem porta-vozes do “sentido cívico”, sempre têm conseguido
apontar, pelo menos nas sociedades democráticas, com a sua pena, as situações
de prepotência dos podres públicos, em nome da defesa das liberdades e
garantias individuais.
Também não tenho dúvidas de que é
bastante difícil comprovar factualmente que o Estado teve ou não atitudes
discriminatórias, em termos éticos e/ou estéticos, em relação a certos
projectos, mesmo que sejam aplicados procedimentos transparentes e critérios
rigorosos e objectivos. No quadro de uma matéria inevitavelmente subjectiva,
como é a avaliação qualitativa de projectos literários, haverá sempre margem
para dúvidas e incertezas.
Como se deve calcular, nem que seja
pela minha formação libertária (que muito prezo), estou bem longe de defender
uma estatização da actividade literária (assim como de qualquer actividade
social e económica). Simplesmente, preconizo um maior e melhor apoio do Estado
na presente conjuntura da actividade literária e editorial, desejando que se
efectue a curto prazo (e num prazo o mais curto possível). Aliás, nada do que
aqui propus está longe do que já está estruturado e organizado em boa parte dos
países que assentam a sua vida pública em regimes democráticos.
Haverá, como é evidente, sempre
projectos literários (e excelentes, ninguém tenha dúvidas) que não necessitam
de nenhum apoio do Estado para que consigam subsistir e sejam até rentáveis,
como haverá sempre quem considere que o sistema literário, com maior ou menor
participação do Estado, será sempre coercivo e castrador da criatividade
individual. Simplesmente, e retomando o problema do princípio, a questão toda
está em saber se uma maior intervenção dos podres públicos, criando uma maior
sustentabilidade à actividade literária, poderá ou não libertá-la, pelo menos
em parte, da tirania do sistema de mercado, possibilitando o aparecimento de
uma diversidade de propostas estéticas que não estejam tão sujeitas ao gosto
dominante.
Regressando à figura de Sade,
gostaria de afirmar que, lamentavelmente, tenho a absoluta certeza que a Bastilha
nunca desmoronará, e que o buraco de agulha, por onde passará a fragilidade da
criação literária (e artística), será sempre entre a morte (a guilhotina), pelo
menos simbólica, e Charendon (a loucura).
A nós, à actual sociedade, ficará
apenas a tremenda responsabilidade de saber como é que se consegue levar a
carta a Garcia.
A imagem integra a Biblioteca Digital Gallica.
Lisboa, Abril de2021/Fevereiro de
2022
José Manuel Cortês